Numa fase em que, um pouco por todo o Mundo, se começam a definir ou a implementar medidas de desconfinamento social e a reactivar muitas actividades económicas, começam a tentar identificar-se os “estragos” conjunturais ou estruturais que a crise pandémica irá provocar nos vários sectores da economia. Um dos potencialmente mais afectados será o sector imobiliário, área de especial importância para o tecido empresarial do nosso país.
Não é fácil estimar a magnitude do impacto da crise pandémica na evolução do mercado imobiliário em Portugal. O impacto no curto prazo será certamente elevado, no volume de transacções e nos preços de venda e arrendamento. Mais ainda se considerarmos que, desde meados de 2013, observámos uma forte recuperação deste mercado no pós-crise financeira internacional de 2008 (agudizada em Portugal com o pedido de auxílio financeiro de 2011).
Por exemplo, após uma queda de 15% no mercado de habitação ao longo de 3 anos, a partir do 3º trimestre de 2013 os preços médios da habitação subiram 56% até ao final de 2019 – um ritmo médio anual superior a 7%, atingindo valores superiores ao anterior pico deste mercado.

O dinamismo da recuperação verificou-se também ao nível do volume de transacções, que passaram de uma média trimestral de 20 mil alojamentos em 2013 para cerca de 45 mil em 2019.

Padrões similares foram observados nos outros segmentos do mercado, dos escritórios ao comércio, da logística à hotelaria – embora com timings e magnitude de recuperação distintos.
Os operadores do sector perspectivavam para 2020 mais um ano positivo, embora bastante mais moderado ao nível dos preços, considerando que alguns zonas do país (como Lisboa e Porto) tinham já atingido preços elevados para o poder de compra (e de financiamento) médio do investidor nacional, a que se juntava alguma recuperação na construção de novo edificado que iria contribuir para um maior equilíbrio entre procura e oferta face a anos anteriores.
Naturalmente, a pandemia alterou profundamente as expectativas para a evolução do mercado, pelo menos no curto prazo. Um inquérito realizado no início deste mês pela APEMIP a um universo alargado de mediadoras imobiliárias, concluiu que mais de 95% das mesmas registaram uma quebra do volume de negócios em abril e uma quebra da procura superior a 92%, reportando a maioria das inquiridas um volume elevado de desistências de compradores em relação a negócios em curso.
E como se comportará o mercado, num fase pós-confinamento? A dimensão do impacto no curto prazo, bem como a evolução no médio e longo prazo, irão depender do perfil e extensão temporal da própria crise pandémica (à escala global, porque o mercado nacional está hoje muito dependente de vários “países emissores de procura” fortemente afectados), da magnitude e impactos dos estímulos monetários e fiscais às economias e de eventuais alterações no padrão da procura nos vários segmentos de mercado.
Com um impacto recessivo da pandemia muito superior ao da crise financeira de 2008, é difícil não antever uma queda nos preços pelo menos similar à da anterior crise do sector. Por outro lado, parece-me ser reduzida a probabilidade de uma recuperação económica com um padrão “V-shaped”, entre outros motivos porque a “abertura” será muito gradual e porque um alto nível de incerteza afecta as expectativas dos agentes económicos, adiando decisões de consumo e investimento.

Como em outros mercados, as expectativas jogam um papel determinante no mercado imobiliário: a presente crise alterou rapidamente o equilíbrio de forças, de um “mercado de vendedores” para um “mercado de compradores”, reforçado pelo crescente peso de proprietários investidores (menos estáveis) no mercado e pelo esperado aumento da oferta de novo edificado. Assim, apesar da incerteza, será razoável antecipar uma queda dos preços de pelo menos 10% a 15% ao longo dos próximos 12 a 18 meses.
E no médio prazo? Com uma enorme incerteza em relação ao tempo necessário é, no entanto, expectável a recuperação do mercado imobiliário nomeadamente porque algumas tendências estruturais só foram interrompidas, e algumas outras saíram reforçadas com a presente crise.
Alguns exemplos: o enquadramento de baixíssimas taxas de juro manter-se-á durante muito mais tempo o que, implicando massivas transferências de rendimentos de aforradores para investidores, manterá a procura estrutural por yield pickup, sendo o imobiliário uma opção óbvia; a atractividade do país no que respeita a qualidade de vida, segurança e affordability saiu, até ao momento, reforçada com a gestão pública da pandemia e a resposta dos serviços hospitalares; apesar da ciclicidade do sector do turismo e de ser potencialmente um dos últimos sectores a reagir, duvido que o trend primário positivo se tenha esgotado, até porque se trata de um país pequeno receptor de turistas de grandes mercados emissores.
Tudo isto é razoavelmente expectável. Mais difícil será antecipar com que “tipo de procura” sairemos da crise no mercado imobiliário. Ou seja, num cenário pós-pandemia observaremos uma alteração profunda e duradoura no padrão da procura no mercado imobiliário?
No mercado de habitação é muito provável que uma significativa quantidade de imóveis “desviados” para o mercado de alojamento local (AL), se redireccione agora para o arrendamento de longo prazo, por falta de procura de turistas (e uma parte será vendido, pelo nível de endividamento de muitos projectos de AL). Mas de forma permanente? Dificilmente … uma recuperação do turismo poderá inverter a tendência a prazo, considerando a enorme diferença de rentabilidades potenciais entre os dois segmentos (e talvez por o alojamento local poder ser visto pelo consumidor como uma solução “mais segura”, pelo maior isolamento). A evolução do AL terá, no médio prazo, um forte impacto nas transacções imobiliárias de habitação e nas expectativas de construção de novo edificado. Mas num prazo mais longo e com o crescente impacto dos millennials na economia, é provável uma mudança estrutural neste segmento imobiliário, pela tendência antecipada no consumidor para a “utilização e não a posse” do bem.
Os segmentos imobiliários de retalho e comércio deverão demorar bastante mais tempo a recuperar, porque a crise pandémica reduzirá o número de empresas no sector e porque gerou um forte impulso ao e-commerce, que deverá observar taxas de crescimento muito superiores nos próximos anos. Acresce que a capacidade instalada nesta área não é, de todo, deficitária.
O segmento imobiliário da hotelaria deverá ser dos mais afectados, demorando mais anos a retomar do que o turismo. O sector foi “apanhado” no meio de uma forte expansão da oferta – segundo a Cushman & Wakefield, estimava-se o investimento em 180 novas unidades hoteleiras até 2023, bastantes com construção já iniciada, tudo isto depois de 5 anos de crescimento (só em 2019 foram inaugurados 60 novos hóteis). Em contrapartida, países como Itália, Espanha ou Inglaterra podem observar uma contracção de médio prazo no turismo – pela forma avassaladora como estes países foram afectados pela pandemia – e beneficiar países como Portugal, atenuando assim, em última análise, parte dos efeitos negativos sobre este segmento imobiliário.
Um dos segmentos mais interessantes de acompanhar nos próximos anos será o do imobiliário industrial e de logística: já em franco crescimento antes da pandemia, deverá sair reforçado, nomeadamente ao nível da logística, por efeito do crescimento mais rápido no e-commerce e por possíveis alterações na geografia de produção (e distribuição) em vários sectores de actividade – após décadas de offshoring de produção poderemos assistir a alguma inversão de tendência, com o surgimento de “vagas” de nearshoring, beneficiando países com relação custo / benefício competitiva, como Portugal.

Mas talvez a maior incógnita para os próximos anos seja a evolução nos escritórios. Com uma percentagem muito baixa de imóveis ociosos, este segmento estava em franca expansão até ao início de 2020; a pandemia alterou as expectativas de muito curto prazo do lado da procura, mas mais interessante será acompanhar os impactos de longo prazo do súbito aumento, em situação de contingência, da opção pelo teletrabalho. Não parece provável uma alteração radical nas opções de funcionamento físico das empresas, será mais plausível a existência de processos de racionalização de custos com opções híbridas de gestão do workforce; ocorrerão assim forças divergentes entre o trendprimário de crescimento da procura versus o impacto no mercado imobiliário da referida racionalização. Mas anúncios como os da multinacional tecnológica Twitter – de que os seus trabalhadores poderão trabalhar a partir de casa “para sempre” – só vêm adensar o nível de incerteza neste segmento, para os próximos anos e à escala global.
Afonso Barbosa
Professor de Contabilidade e Controlo na AESE Business School.
Fonte: https://aese.createsend1.com
May 31, 2020